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LTONews
2023-11-22
Este artigo foi revisto pela última vez em
Este artigo foi modificado pela última vez em 22 de Novembro de 2023.

Desafios e oportunidades na atualização das normativas para laboratórios clínicos

A recente publicação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que introduz modificações pontuais na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 786/2023, tem gerado debates e reflexões na comunidade científica. Para alguns, representa um avanço significativo; para outros, levanta preocupações sobre a fundamentação teórica e os impactos práticos dessas alterações. Desde a substituição da RDC 302/2005, baseada na norma internacional ISO 15189, pela RDC 786/2023, observa-se divergências nas abordagens normativas. Neste contexto, é essencial um olhar atento às opiniões e perspectivas críticas, analisando como as mudanças propostas pela ANVISA podem influenciar diretamente as boas práticas nos laboratórios clínicos. 

A nova resolução, que visa aprimorar a implementação da RDC 786/2023, refere-se aos requisitos técnicos sanitários para o funcionamento dos laboratórios clínicos, de análise patológica e outros serviços que realizam atividades vinculadas a exames de análises clínicas (EACs) no Brasil. Dentre as alterações, inclui-se a definição do termo "material biológico primário"; "envio/transporte de material biológico pelo paciente"; "exigência de informação referente ao Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES) no laudo laboratorial"; "informações obrigatórias na embalagem terciária de materiais biológicos"; e "limitação da abrangência da norma". 

Luisane Maria Falci Vieira, médica especialista em patologia clínica, membro da CALC e coordenadora do Comitê da Qualidade, aborda os desafios e oportunidades desta atualização:

 

Qual a sua opinião sobre a recente publicação da ANVISA contemplando modificações da RDC 786, recém-publicada em maio de 2023?

Acho que foi um bom começo. Desde a publicação da RDC 786/2023 venho me preocupando com alguns itens que lá constam. A RDC 302/2005, substituída pela RDC 786/2023, foi baseada na norma internacional ISO 15189 vigente à época e até o momento um dos principais documentos de referência mundial para a gestão da qualidade e acreditação dos laboratórios clínicos. Os conceitos globalmente aceitos pelos estudiosos da área lá estavam. Já com a RDC 786/2023 se deu o contrário, não se percebe em quais marcos teóricos foi baseada. E alguns dos conceitos e requisitos que lá estão contrariam as boas práticas de laboratório clínico e deveriam ser aprimorados.

 

Você poderia dar um exemplo?

Vários! Mas vou destacar um item da Norma que me parece esdrúxulo, uma verdadeira “jabuticaba” e que poderá gerar inúmeros prejuízos para os laboratórios clínicos, sem agregar qualidade analítica. Vejamos a definição de “IX-Controle Externo da Qualidade ”CEQ: determinação da exatidão e do desempenho do processo analítico dos EAC(sic), realizada por meio de comparações Interlaboratoriais conduzidas por Provedor de Ensaio de Proficiência, também conhecido como Programas de Ensaios de Proficiência.”

Vemos aqui uma confusão de termos consagrados na literatura laboratorial, incluindo-se a ISO 15189 e a Norma PALC. O termo preferido para a avaliação da veracidade dos sistemas analíticos é a “Avaliação Externa da Qualidade” (AEQ), a qual pode ser realizada por meio de Ensaio de Proficiência ou de alguma modalidade de Avaliação Externa Alternativa, como por exemplo, a comparação interlaboratorial. A definição que consta na RDC 786/2023 não está conforme com as definições atuais (as quais, inclusive, vem se mantendo há décadas). Há aí uma confusão entre “Controle Externo” e Ensaios de Proficiência.

No corpo da RDC 786/2023 temos novamente uma reiteração do erro:

“Controle Externo da Qualidade (CEQ) Art. 151. A participação em programas de CEQ deve ser individual para cada Serviço que executa EAC e para todos os instrumentos em uso. Art. 152. Para os exames não contemplados em Programas de CEQ, o Serviço que executa EAC deve adotar formas alternativas de avaliação da exatidão do sistema analítico descritas em literatura científica. Parágrafo único. O Serviço que executa EAC deve verificar anualmente a disponibilidade de ensaios de proficiência para esses exames, junto aos Provedores de Ensaios de Proficiência e fornecedores.”

Conseguimos entender, com algum esforço, que o termo Controle Externo da Qualidade seria, erroneamente, considerado sinônimo de Ensaio de Proficiência, em detrimento da adoção de “Avaliação Externa da Qualidade” , conceito que compreende a participação em Ensaios de Proficiência e também alguma modalidade de avaliação externa alternativa da qualidade.

Para piorar, o Artigo 151 exige a participação em Ensaio de Proficiência para cada laboratório clínico, o que é correto, mas segue exigindo esta participação para todos os instrumentos em uso, o que é um completo absurdo. É fato que, para cada laboratório clínico e para todos os analitos que disponibiliza, deve haver uma sistemática de avaliação externa da qualidade. E não, como implícito “Controle Externo da Qualidade para todos os instrumentos em uso”. A prática recomendada globalmente e que a AEQ seja efetivada para cada analito, com a possibilidade de comparação Inter sistemas analíticos que permita verificar se há equivalência entre os múltiplos sistemas analíticos.

Ou seja, a RDC 786/2023, como redigida, pretende que cada laboratório clínico contrate um Provedor de Ensaios de Proficiência para cada “Instrumento” em uso (outro conceito equivocado) e não para cada analito. Além do aumento dos custos administrativos evidentes, uma vez que o provedor vende serviços em volume adequado para um analista apenas, teremos uma Torre de Babel.

Vamos supor que um laboratório tenha 5 equipamentos que analisam glicose. Hoje ele assina o ensaio “Glicose” junto ao provedor e envia um único resultado de cada amostra cega para o sistema de informações do provedor, que avaliará a presença de desvios em relação ao padrão aceito. O laboratório clínico, a receber a avaliação do provedor, fará os ajustes necessários tanto no sistema analítico efetivamente avaliado como nos sistemas equivalentes, se houver. 

Agora imagine um laboratório que, forçado pela RDC 786/2023 tente assinar o Programa de Ensaios de Proficiência para 10 “Instrumentos” que realizam a determinação quantitativa da glicose no mesmo endereço. Depois suponha que receba 5 avaliações do Provedor, com 5 resultados “Adequados” e 5 resultados “Inadequados”. Como deverá agir para lidar com esta enrascada? Eu estarei na plateia.

https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2023/norma-altera-pontualmente-rdc-sobreexames-de-analises-clinicas-eac